Está ocorrendo uma articulação entre especialistas
para prever os possíveis efeitos das mudanças do clima sobre o agronegócio,
responsável por um terço da economia brasileira. Há indicações de que a produção
de soja, trigo e outros cultivos possa cair de modo dramático e a incidência de
pragas e doenças possa aumentar, em resposta à provável elevação da temperatura
e mudanças na distribuição das chuvas pelo país. O temor é que, num primeiro
momento, os preços possam subir e a variedade de cereais, hortaliças e frutas à
mesa sofra uma redução.
Antecipando-se aos cenários que preveem tempos
difíceis pela frente, centros de pesquisa e empresas estão desenvolvendo - e já
apresentando - variedades de cereais e hortaliças mais resistentes a
temperaturas mais elevadas e ao ataque de microrganismos causadores de doenças e
pragas. A tendência é que, mais adiante, plantas, pragas, consumidores e a
própria economia se reacomodem e encontrem novos estados de
equilíbrio.
Em um estudo financiado pelo Banco Mundial, pesquisadores da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Embrapa Informática
Agropecuária, usando 23 modelos computacionais de simulação climática global e
três regionais, detectaram uma clara tendência de queda na produção de algodão,
arroz, feijão, soja, milho e trigo, como efeito da provável elevação da
temperatura, em 2020 e 2030. A redução da produção pode chegar a 64% no caso do
feijão e 41% do trigo, mesmo no cenário mais otimista, com um pequeno aumento na
temperatura média anual. No cenário pessimista, a produção de feijão pode cair
70% e a de soja, 24%. De acordo com esse trabalho, só a produção de
cana-de-açúcar e de pastagens é que deve se beneficiar com o clima mais quente
(ver tabela).
O cardápio dos próximos anos:
Créditos:
Divulgação
Em paralelo, os especialistas do Climapest, um projeto de
pesquisas coordenado pela Embrapa Meio Ambiente, de Jaguariúna (SP), estão vendo
que algumas doenças - principalmente as causadas por fungos - e as pragas podem
se agravar em muitas das 19 culturas analisadas - entre as quais soja, milho,
café, arroz, feijão, banana, manga e uva -, em decorrência da elevação dos
níveis de CO² do ar, da temperatura e da radiação ultravioleta B, como previsto
nos cenários de mudanças do clima (ver tabela ao lado).
Outra
possibilidade é a migração de doenças como a sigatoka negra, a mais preocupante
da bananeira, causada por um fungo, que deve perder intensidade em algumas
regiões produtoras, mas avançar para o sul, emergindo onde ainda não se
manifestou. "A luta contra as doenças não tem fim", diz Wagner Bettiol, da
Embrapa Meio Ambiente. "As plantas e as pragas das próximas décadas poderão ser
diferentes das de hoje."
Como se prevê que a incidência de algumas
doenças deve aumentar e a de outras diminuir, "não é possível generalizar o que
vai acontecer", diz Raquel Ghini, pesquisadora da Embrapa de Jaguariúna e
coordenadora do Climapest. Criado há três anos com um investimento de R$ 5
milhões da Embrapa e R$ 2 milhões de outras instituições públicas e empresas, o
projeto reúne 134 pesquisadores de 17 unidades da Embrapa e 22 institutos de
pesquisa e universidades. O trabalho deve tomar a forma, até o final do ano, de
um livro com mapas indicando a provável distribuição das doenças e pragas
agrícolas no país nas próximas décadas.
"O clima mais quente favorece o
crescimento e a reprodução de insetos", reconhece José Roberto Postali Parra,
professor da agricultura="Agricultura" luiz="Luiz" de="de"
queiroz="Queiroz">Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da
Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de um Instituto Nacional de
Ciência e Tecnologia de Semioquímicos na Agricultura, para controle biológico de
pragas, "mas o prejuízo depende de interação com outros insetos e com o
ambiente, das respostas da planta e da oferta de água".
Segundo Parra, os
próprios inimigos naturais poderão se desenvolver mais rapidamente e combater as
pragas. "Se houver alteração da geografia das culturas, como poderá acontecer
com os citrus", diz ele, "as pragas poderão mudar, e vão prevalecer as mais
resistentes a altas temperaturas".
Efeitos
visíveis
"Vimos claramente que a área plantada de café caiu
bastante ou até mesmo desapareceu no noroeste paulista e no sul de Minas Gerais,
que sofreram um aumento de temperatura nas últimas décadas", diz Hilton Silveira
Pinto, pesquisador da Unicamp e um dos coordenadores do estudo financiado pelo
Banco Mundial. Seus estudos anteriores haviam indicado uma redução próxima a 90%
nas áreas favoráveis ao plantio em Goiás, Minas e São Paulo e de 75% no Paraná
até 2020, em resposta ao aumento de temperatura.
O café deve continuar a
ser cultivado apenas nas terras mais altas do Sudeste ou mais ao sul do país,
inclusive no Rio Grande do Sul, onde hoje é apenas consumido. "As alterações do
clima já estão mudando as redes de transporte e distribuição e organização
rural, na medida em que implicam o desemprego ou a migração de mão de obra
especializada."
O aumento da concentração de gás carbônico (CO²) do ar
pode ter um efeito favorável, ao aumentar a produtividade agrícola e fazer as
plantas crescerem mais rapidamente. Em um dos experimentos de campo da Embrapa
de Jaguariúna, chamado Face, sigla de
free air carbon dioxide
enrichment, os cafeeiros que receberam doses extras de CO² cresceram mais e
estão do mesmo tamanho que os pés de café plantados um ano antes, que se nutrem
com o CO² fornecido pela atmosfera normal.
Em funcionamento desde agosto
de 2011, o Face ocupa uma área de 6,5 hectares cultivada com cafeeiros. Doze
octógonos com 10 metros de diâmetro se destacam em meio aos cafeeiros. Em seis
octógonos, as plantas recebem CO² em uma concentração de 550 partes por milhão
(ppm), simulando a atmosfera do final do século. Por dia, sensores acionados
automaticamente de acordo com a direção e intensidade do vento liberam sobre as
plantas 600 kg do gás que sai de um tanque de 10 metros. Em outros seis
octógonos os cafeeiros contam apenas com o CO² da atmosfera, em uma concentração
de 400 ppm -- já é mais do que os 350 ppm que Raquel usava há 10 anos para
prever o comportamento das plantas. "Há 10 anos, ninguém acreditava quando se
falava em mudanças climáticas", diz ela.
O crescimento acelerado das
plantas também pode ser um problema. Nos últimos dois anos, os produtores de
flores de Holambra verificaram que as plantas floresceram antes do esperado,
provavelmente por causa da elevação da temperatura média na região. Nesse caso,
o crescimento acelerado é uma tragédia para quem tem de entregar suas encomendas
viçosas nas mãos dos consumidores em datas certas, como a véspera do Dia das
Mães ou em Finados.
Na Embrapa Semiárido, de Petrolina, Pernambuco, por
meio de uma série de testes em estufas de topo aberto, Francislene Angelotti
verificou que as principais doenças causadas por fungos que prejudicam a
produção de uvas -- o míldio, o oídio e a ferrugem -- poderão responder de
maneira diferenciada ao aumento da concentração de CO². Há diferenças também de
acordo com a variedade de uva. A variedade Sugraone se mostrou mais sensível à
ferrugem e a Crimson ao fungo causador do oídio da videira, mas em contrapartida
o míldio foi considerado menos agressivo na variedade Itália. De modo similar, o
fungo causador do oídio em tomate, alface, pimentão e melão deve se tornar mais
comum, beneficiado pela temperatura mais alta e umidade mais intensa. Já o fungo
que causa míldio em alface e atualmente se desenvolve bem apenas com frio e
umidade deve ter dificuldade para crescer em clima mais quente e seco.
Os
especialistas alertam, porém, que os agentes causadores de doenças podem se
adaptar ou sair da sombra, aproveitando o espaço deixado por outros. Um
microrganismo causador de míldio em abóbora, melão, alface e abobrinha, o
Pseudoperonospora cubensis, deveria morrer em temperaturas mais altas,
mas aparentemente já se adaptou a um clima mais quente e seco.
"O míldio
se tornou uma doença comum no norte de Minas, porque o fungo já se adaptou a um
clima mais quente", diz Kátia Regiane Brunelli, pesquisadora da Sakata Seed
Sudamerica Ltda., empresa multinacional japonesa que desenvolve e produz
sementes de hortaliças, por meio de melhoramento genético. "Com um clima
tendendo para mais quente e seco", diz Romulo Fujito Kobori, diretor de pesquisa
e desenvolvimento da empresa, "algumas doenças causadas por vírus devem se
tornar mais importantes do que hoje".
Substitutos em
campo
Kobori, com sua equipe de geneticistas, intensificou a
busca por variedades mais resistentes aos efeitos das mudanças do clima logo
depois das primeiras conversas com a equipe do Climapest, há sete anos, sobre as
doenças mais prováveis daqui a alguns anos. Uma caminhada pelas estufas e pelos
canteiros da estação experimental da empresa, em Bragança Paulista, indica que o
trabalho amadureceu para a maioria das hortaliças trabalhadas: "Em 20 anos, se o
clima mudar muito, esta é uma variedade de brócolis que não vai servir, mas esta
outra vai", diz ele, indicando para os canteiros à sua frente, tomados por
brócolis e alface com sutis, mas decisivas, diferenças no porte, formato e
espessura das folhas e, claro, na capacidade de sobreviver a doenças.
A
Sakata começou há alguns anos a vender variedades de tomate, alface, pimentão,
melão, cenoura, cebola, abóbora, abobrinha e pepino geneticamente resistentes a
fungos, vírus e bactérias que devem se tornar mais expressivos nos próximos anos
nas regiões tropicais. É um trabalho demorado: cada nova variedade toma de 10 a
15 anos de trabalho até se tornar comercial. Ele espera que as técnicas de
biologia molecular possam reduzir esse tempo à metade ao identificar as plantas
que apresentam os genes que lhes conferem características de interesse como
qualidade, produtividade e resistência a doenças.
A seleção genética de
novas variedades de árvores frutíferas é ainda mais demorada. "As variedades que
usamos são de 60 anos atrás", diz Renato Beozzo Bassanezi, pesquisador do Fundo
de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), centro de pesquisa financiado pelos
produtores em Araraquara. Laranjeiras mais resistentes às incertezas do tempo
seriam bem-vindas porque as mudanças do clima já estão interferindo na
citricultura, uma das principais atividades econômicas do estado de São Paulo, o
principal produtor nacional e um dos maiores do mundo, com 230 milhões de pés de
laranja em produção.
Em 2009, o inesperado excesso de chuva nas
plantações de laranja atrapalhou a floração e favoreceu o crescimento de fungos
e a produção caiu 10%. Segundo Bassanezi, os produtores compraram fungicidas,
que não foram necessários porque no ano seguinte o clima foi seco. Os quase 20
dias de chuva contínua no início de junho deste ano devem antecipar a florada e,
outra vez, prejudicar a floração e favorecer o crescimento de ervas daninhas,
fungos e insetos transmissores de doenças.
O cancro cítrico, doença de
origem bacteriana bastante disseminada, pode se espalhar mais facilmente e se
apresentar sob formas mais severas em um clima marcado por temperaturas médias
anuais mais elevadas e chuvas mais intensas e concentradas. "Confirmando-se as
previsões de mudanças climáticas", diz Bassanezi, "as regiões do norte e do sul
do país ficarão mais favoráveis para epidemias de cancro".
Bancos
de Germoplasma
Se as pragas e doenças avançarem ainda mais, os
bancos de germoplasma - coleções de genótipos de arroz, feijão, soja, milho e
muitas outras plantas de interesse econômico, mantidas em câmaras resfriadas ou
em campo - devem ganhar mais atenção. A situação atual dos bancos de germoplasma
é inquietante, porque não há um inventário atualizado das coleções, dispersas em
centros de pesquisas, universidades, jardins botânicos e empresas.
"As
coleções dos bancos de germoplasma não estão adequadamente caracterizadas", diz
José Baldin Pinheiro, professor da Esalq e presidente da Rede Paulista de
Recursos Genéticos, criada em março de 2012. Em um encontro marcado para o mês
de dezembro em Piracicaba, os integrantes da rede devem apresentar uma visão
atualizada do acervo e do estado de conservação dos bancos paulistas de
germoplasma.
Talvez muitas plantas da agricultura do futuro já estejam
crescendo no Nordeste. Em novembro de 2006, ao se mudar do interior do Paraná
para Petrolina, Francislene admirou-se com a resistência à seca e o poder de
regeneração das plantas da região, que pareciam queimadas por fogo, e duas
semanas depois de uma chuva começavam a brotar outra vez.
Outra surpresa,
há poucos meses, foi saborear as maçãs, peras e caquis irrigados e cultivados no
campo experimental da Embrapa. "As variedades de pera do Instituto Agronômico
(IAC) de Campinas e de maçãs do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) se
adaptaram muito bem", diz Paulo Roberto Coelho Lopes, coordenador do projeto de
diversificação de culturas da Embrapa Semiárido. "Nunca se imaginava que frutas
de clima temperado pudessem crescer aqui."
Fonte original: Revista
Pesquisa Fapesp
N.E.: Artigo retirado da Edição 198 - Agosto de 2012,
da revista Pesquisa Fapesp.
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